Viramos turcos!

Por Khalid Tailche

“Viramos turcos para permitir-nos o que o céu não consente aos otomanos?”. Estas são as exatas palavras de Otelo, o nobre mouro árabe a serviço da República de Veneza, no segundo ato da obra homônima de William Shakespeare. À época de Shakespeare, mais especificamente quando a peça Otelo foi ensaiada pela primeira vez, em 1604, o Império Turco invadira os paises árabes, desde o Egito, controlando o mar Mediterrâneo em boa parte da Europa Ocidental, e foi até a Hungria. A invasão turca representava, por um lado, uma ameaça para os europeus, e por outro, a consolidação de uma má fama para os turcos. Sob o Império Turco, milhares de pessoas foram massacradas, e outras milhares foram exiladas para longe de sua terra.

A ironia é que, no nosso tempo, os inimigos de ontem podem ser os aliados de amanhã. A Turquia, monstro que ameaçava seus vizinhos, acaba sendo a ponte que liga a Europa ao Oriente Mulçumano. Apesar da história sangrenta da morte de milhares de armênios - em um dos massacres mais violentos da história mundial -, a invasão do mundo árabe e a ameaça à Europa, a Turquia é hoje um país democrático que quer fazer parte da União Européia. E por que não, já que a capital da Turquia localiza-se no lado Europeu da Turquia, e não no lado asiático?

Os dois países árabes que têm fronteiras com a Turquia são Iraque e Síria. Até hoje podemos observar várias palavras da língua turca no dialeto iraquiano. O efeito não pára por aí. As relações econômicas e políticas entre a Turquia e os países árabes também mudaram. Da mesma forma que se aproxima dos países europeus, na posição de país amigo e possível aliado, não perde seu papel de liderança na região. Mesmo assim, a longa invasão turca ao mundo árabe criou certa sensibilidade entre os árabes e os turcos, que pode ser observada até hoje, registrada na memória do mundo árabe em geral.

Longe da Turquia, no continente americano, está o Brasil, um país que abarca uma variedade étnica imensa. Cosmopolita, apresenta mistura de raças de vários países. Tanta diversidade cria muitas vezes dificuldades no entendimento das diferenças culturais e históricas, gerando um senso popular sobre as raças e suas origens. No caso dos árabes, muitas vezes ficaram surpresos pelo fato de serem chamados de turcos!

O apelido não agrada aos árabes, mas justifica-se, pois na época do principal fluxo de imigração árabe para o Brasil, estes chegaram com passaportes do Império Otomano, que ocupava seus países naquele momento. Também por causa da música e da comida, muitas vezes semelhantes nos vários países árabes e na Turquia, a confusão cultural se espalhou. Desde então, árabes têm sido chamados de turcos e sentem-se ofendidos, pois muitos brasileiros não compreendem a diferença.

A questão que se apresenta é: será que o nosso mundo globalizado de hoje vai nos aproximar uns aos outros, criando uma harmonia maior entre os países do mundo e seus povos, ou o antigo lobo cobiçoso só mudará sua aparência, mas não seu comportamento, guardando escondidos seus dentes afiados? Não sabemos, mas o futuro nos dirá. Há esperança de que os povos comecem a aprender a respeitar os outros e a conviver com mais harmonia e sem preconceitos. Assim, o passado não será mais amargo, e todos nós seremos chamados de turcos, árabes ou brasileiros com prazer!

Correio do Icarabe – Ano 3 - Edição nº 89
Instituto de Cultura Árabe - www.icarabe.org

Khalid Tailche, graduado em literatura no Iraque, nasceu em Mosul, Iraque, e vive há 19 anos no Brasil