Pouco tempo para o Tibete

Aninhada na encosta de uma montanha, com suas ruas estreitas e pequenas lojas, a cidade mais parece uma simples base para os montanhistas a caminho dos picos nevados do que a residência de um líder religioso tão famoso e admirado.

Retiro espiritual
No entanto, essa pequena cidade indiana é única. Seus moradores são uma mistura notável de negociantes locais, refugiados tibetanos, peregrinos piedosos, europeus cansados da civilização e americanos em busca de significado para suas vidas. Muitos vêm para cá procurar um retiro espiritual do mundo materialista ou - como um grupo de israelenses - um lugar agradável para fumar maconha sem ser incomodados.

Monges tibetanos com cabeças raspadas e túnicas vermelho-escuras conversam na pequena praça da cidade à tarde. Cartazes nas paredes pedem "Liberdade para o Tibete" e o boicote às Olimpíadas de Pequim em 2008 se a ocupação do Tibete continuar. Peregrinos do mundo inteiro esperam com ansiedade permissão para entrar na residência do Dalai Lama.

Nesta manhã de segunda-feira chegou uma grande delegação de budistas mongóis. Alguns cidadãos chineses da República Popular também estão aqui.

Eles não se deixaram enganar pela propaganda de Pequim, que denuncia o Dalai Lama como um "traidor" e "separatista" . "Ele é o guru do meu coração", sussurra uma bonita estudante do sul da China, de rabo-de-cavalo.

O Dalai Lama atende seus conterrâneos antes de se dedicar aos visitantes estrangeiros. Cerca de 308 tibetanos, a maioria deles agricultores e pastores, esperam em silêncio por ele, o rei divino, no terreno em frente a um templo. Eles usam jornais para se proteger do sol forte da primavera enquanto crianças brincam entre eles.

Esperança para o Tibete
Alguns atravessaram clandestinamente a fronteira do Tibete para o Nepal - coisa perigosa de se fazer, pois as patrulhas de fronteiras chinesas às vezes abrem fogo. Recentemente eles atingiram uma monja fugitiva em uma geleira. Outros visitantes têm visto oficial para o Nepal. Guias que conhecem bem o território os trouxeram através da fronteira para a Índia.

A maioria desses peregrinos volta para seu país depois de algumas semanas, mas muitos ficam para o resto da vida. Eles entram em um dos mosteiros tibetanos na Índia, ganham um lugar num lar para idosos ou freqüentam a escola em Dharamsala. Os refugiados incluem um número notável de crianças cujos pais ficaram para trás no Tibete.

Os soldados indianos se mantêm atentos. Um guarda-costas em roupas civis assume sua posição, armado com uma metralhadora que poderia ter vindo do arsenal da ex-potência colonial britânica. Às 10 da manhã em ponto, o Dalai Lama caminha entre a multidão. Ele não se senta numa grande cadeira que foi colocada para ele. Aos 71 anos, ele fica de pé, falando em um microfone cor de laranja por cerca de uma hora.

Seu discurso é mais político que religioso. "Vocês fazem parte da nossa luta. Vocês vão continuá-la. Vocês mantém o espírito e a cultura tibetanos vivos. Vocês são os mantenedores da fé e da identidade", ele incentiva a platéia.

O Dalai Lama cita Mao Tse-tung e Deng Xiaoping. Ele insulta os chineses e ao mesmo tempo os elogia. A China sofreu "grandes mudanças" nos últimos anos e não deixará de se reformar, ele diz. É por isso que ainda há esperança de que o Tibete consiga se libertar do jugo chinês, ele continua.

O tempo está se esgotando
O Dalai Lama faz essas aparições públicas somente uma ou duas vezes por mês.

O objetivo é dar a todos que vêm do Tibete a oportunidade de vê-lo. Ele parece alegre e descontraído - e não dá a impressão de um homem cujo tempo está se esgotando. Mas também sabe que as probabilidades de ele voltar a Lhasa estão diminuindo a cada dia que passa.

Não há progressos nas negociações com os chineses sobre o futuro do Tibete.

Os dois lados simplesmente "esclareceram suas posições" nos últimos três anos, o que significa que o Dalai Lama não busca mais a independência.

Agora, como ele disse à SPIEGEL em uma entrevista, Pequim indicou que quer continuar o diálogo, mas não definiu qualquer cronograma para isso.
Pequim aposta que o tempo trabalhará a seu favor. Evidentemente os chineses querem esperar com paciência até que o Tibete perca o Dalai Lama - e o mundo perca um mestre que durante quase 50 anos atuou como o maior agente publicitário do Tibete, estabelecendo contatos estreitos com Washington, Bruxelas e Hollywood.

Os chineses calculam que quando o líder de 71 anos morrer o interesse do Ocidente pelo lugar místico que é o Tibete vai desaparecer, a procura por Xangrilá terminará e a pressão política sobre Pequim derreterá como as velas de manteiga nos altares dos mosteiros locais.

"Os chineses não confiam em nós. Eles não confiam em Sua Santidade", queixa-se Thubten Samphel, o porta-voz do governo no exílio. Mas, ele diz, os tibetanos não podem fazer mais concessões do que já fizeram. "Temos nosso orgulho. Fomos até onde pudemos ir, mas esse é o limite."

Pessoas como Samphel podem ver os efeitos que 50 anos de domínio chinês tiveram sobre seus conterrâneos. "Os jovens tibetanos que chegam aqui não falam tibetano entre si, falam chinês", ele comenta com tristeza. "Eles querem conhecer uma mulher branca aqui em Dharamsala e então partir para os EUA ou a Europa."

Outros estão se tornando cada vez mais impacientes. Kelsang Phuntsok, 45 anos, presidente do Congresso da Juventude Tibetana, é um desses ansiosos.

"Estamos muito preocupados com o que acontecerá ao Tibete depois da morte do Dalai Lama", ele diz.

Sentado em seu escritório desorganizado, Phuntsok não esconde sua opinião de que "o caminho do meio" da autonomia pretendida pelo Dalai Lama é um enorme erro: "Estamos falando de independência, e não de autonomia. As pessoas têm independência em seus corações. Nós acreditamos nisso".

"O conceito de violência não acabou para nós", ele diz. "Matar chineses é a coisa mais fácil do mundo. Mas é inútil nesta fase." Uma greve de fome na frente do edifício da ONU em Nova York faz maior pressão contra Pequim do que atentados, diz o jovem funcionário político.

O líder rebelde sul-americano Che Guevara é seu grande ídolo, ele confessa antes de se despedir. "Temos força para levar o movimento tibetano em outra direção", ele diz.

Caminho para a democracia
Em um futuro Tibete autônomo, o Dalai Lama quer um sistema político com "liberdade de expressão e o regime da lei", ele insistiu na entrevista à SPIEGEL. Mas o espírito da democracia até agora não conseguiu florescer em Dharamsala - iniciativas para fundar partidos políticos no exílio ainda não deram resultados.

"O sistema democrático foi adotado por Sua Santidade", diz timidamente o primeiro-ministro Samdhong Rinpoche. O que ele quer dizer é que o sistema democrático não é produto da pressão popular "de baixo", nem a expressão de um desejo genuíno de participação política. É simplesmente um sistema que atrai o Dalai Lama. "As pessoas têm dificuldade para imaginar uma liderança política que não seja também religiosa", diz Samdhong.

Ele e os outros lamas e ministros estão constantemente imaginando o futuro do budismo tibetano. O que aconteceria se o Dalai Lama anunciasse no fim de sua vida que não haverá uma 15ª reencarnação no exílio? "Estamos considerando um modelo parecido com o do Vaticano", diz o líder do governo.

O simpático monge Thupten Ngodup é uma pessoa que poderia exercer considerável influência sobre a questão do sucessor do Dalai Lama. Suas feições são surpreendentemente suaves para um homem de 49 anos, e ele tem uma risada franca. Mora no mosteiro de Nechung em quartos com vista para o profundo vale lá embaixo.

Ngodup gosta de flores e cachorros, e provavelmente tem o emprego mais misterioso do mundo: ele é o oráculo oficial do Tibete, cuja função é prever o futuro do Dalai Lama. Seu antecessor pediu que o rei divino, que na época tinha 24 anos, fugisse do Tibete durante a insurreição.

O Dalai Lama - que gosta de se cercar de cientistas, filósofos e pensadores internacionais - tem uma crença inabalável nas forças sobrenaturais misteriosas. O mesmo parece valer para a jovem chinesa de rabo-de-cavalo, a última peregrina que ele recebe nessa manhã. "Você tem de viver para sempre!", ela diz em inglês. "Prometa!"

O Dalai Lama olha para ela, sorri e não diz nada

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Texto enviado por Marcelo Marcolino - São Paulo-SP